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O Aprendiz | Crítica

Assustadoramente humana, biografia de Donald Trump é uma denúncia de sua transformação como principal rosto do capitalismo.
Divulgação.

Apenas um mês antes das eleições americanas, o novo filme de Ali Abbasi (Holy Spider) oferece um olhar visceral e humano sobre a ascensão de Donald Trump como uma estrela americana, sua relação com a primeira esposa e com Roy Cohn, seu advogado e grande mentor de carreira.

A data de lançamento de O Aprendiz apenas reforça a ideia de que coincidências são lendas urbanas. Um dia após a estreia do filme em Cannes, o ex-presidente Donald J. Trump classificou a obra, baseada em sua biografia, como “difamação maliciosa”, afirmando que entraria na justiça pela forma como sua história foi representada por Ali Abbasi. O diretor, de maneira inabalável, respondeu às ameaças, ressaltando a baixa taxa de sucesso de Trump em ações judiciais. (Fonte: The New York Times)

Esse caso mostra o quão delicado pode ser lançar uma obra biográfica da figura mais polarizadora dos últimos anos nos EUA. Embora Trump não tenha apreciado a ideia do filme, em O Aprendiz sua imagem é tratada de forma assustadoramente humana, permitindo que o espectador compreenda sua trajetória para se tornar quem ele é.

Estamos em Nova York, no ano de 1973, um período de alto desemprego e iminente falência da cidade. A “Grande Maçã” estava à beira do colapso. Somos apresentados a um homem branco, alto, constantemente preocupado com o cabelo: Donald J. Trump, interpretado por Sebastian Stan. Ao longo do filme, ele vai revelando os aspectos mais obscuros da persona que idealizamos. Com cerca de 20 anos, por trás dessa aparência comum, há um instinto “matador”, algo que ele considera seu maior diferencial.

Sua fome por mudanças direciona sua vida. Para Trump, existem dois tipos de pessoas: matadores e perdedores. A partir dessa ideologia, O Aprendiz transforma a biografia do ex-presidente em um oceano de contradições e injustiças, que impulsionam a carreira de uma figura desagradável, mas que se tornou um modelo para milhões.

Acompanhamos a trajetória de Trump no mercado imobiliário e sua relação com Roy Cohn (Jeremy Strong), que cria uma dinâmica de mestre e aprendiz. Cohn ensina a Trump os “atalhos” para vencer. Enquanto o falho e corrupto sistema político e econômico dos Estados Unidos é retratado, Trump luta pelo amor de Ivana (Maria Bakalova).

É interessante como Ali Abbasi explora a história a partir do olhar predatório de Trump, mostrando suas relações pessoais e profissionais como se fossem jogos a serem vencidos e exibidos como troféus. O jovem subestimado que conhecemos no início do filme se transforma na personificação viva do capitalismo, moldando a realidade conforme suas próprias verdades, ainda que isso signifique atropelar isenções fiscais, leis tributárias e a “incontestada” justiça americana.

O filme faz uma transição do analógico para o digital, transportando o público para momentos-chave da vida de Trump, evidenciando a passagem do tempo e a proporção crescente de suas ambições com o avanço da tecnologia. A trilha sonora intensifica esses momentos, transformando uma simples reunião em um ambiente assustador.

As principais figuras do filme, Donald J. Trump e Roy Cohn, são dois lados da mesma moeda: produtos de um sistema desigual, que se aproveitam de suas brechas para se colocarem como vítimas de uma sociedade que tenta “reprimir” seus sonhos americanos. A performance de Sebastian Stan é impressionante, pois ele consegue capturar a corrupção de um homem tirano, que, apesar de suas falhas, ainda tem uma certa moralidade em situações específicas. Com o tempo, sua caracterização dá lugar a um monstro, evidenciado por sua aparência desgastada e suas ações imperdoáveis envolvendo sua esposa e irmão. Sem dúvida, este é um dos trabalhos mais complexos do ator.

Jeremy Strong brilha em suas expressões, que atravessam o público, seja demonstrando desgosto ou ambição. Como Fernando Meirelles já nos alertou em Cidade de Deus (2002): “Quem cria cobra, amanhece picado“. Essa frase resume a trajetória de Roy Cohn. Apesar de seu caráter duvidoso, ele era leal aos amigos. Pena que, entre as várias lições passadas ao aprendiz, lealdade não foi uma delas.

No fim, o capitalismo talvez seja o verdadeiro protagonista de O Aprendiz. Suas ideologias moldam a mente de pessoas como Trump, criando cenários extremos em qualquer área onde atuem. Nesse contexto, a beleza interior é irrelevante; o importante é a impressão que passamos com o exterior, como um prédio na Quinta Avenida de Nova York.

Por fim, uma recomendação: para quem deseja entender melhor o cenário político americano, vale a pena ler o livro Como as Democracias Morrem. Best-seller do The New York Times, escrito pelos professores de Harvard, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, o livro apresenta uma linha cronológica da política dos EUA, explicando como a eleição de Donald Trump foi possível em 2016.

4

MUITO BOM

Com ótimas atuações de Sebastian Stan e Jeremy Strong, O Aprendiz denuncia às regras de uma sociedade capitalista, enquanto explica a ascensão de uma das maiores figuras da história dos Estados Unidos.